O frio e as mulheres de botas, por David Coimbra

Adoro mulheres de botas. Botas de salto alto, evidentemente. Essa é a vantagem do inverno. As mulheres usam botas de saltos altos e canos mais altos ainda, e os cabelos elas os deixam soltos, desabando-lhes costas abaixo como cascatas macias e cheirosas, e elas vestem calças justíssimas que lhes ressaltam as curvas e, às vezes, ainda que tapadas por todas aquelas roupas invernais, elas permitem que uma faixa de ventre liso surja quando o blusão curto se ergue para acompanhar um suspiro, um movimento mais largo de braço, um doce espreguiçar.

Ah, o inverno não é tão ruim assim.

Outra vantagem do inverno é que você pode esticar quatro fios de óleo no fundo de uma panela de ferro, não mais do que quatro fios de óleo, não passando de cinco, no máximo seis, jamais estendendo o limite para além de sete, ou, em último caso, oito, oito fios de óleo que serpenteiam no fundo negro da panela de ferro enquanto que, sob ela, arde o fogo azul da boca do fogão. Então, você espera que o óleo ferva num chiado e, durante a espera, toma uma cebola do tamanho do punho da Scarlett Johansson e, de posse de uma faca para exclusivo corte de cebola, a pica.

Pica a cebola, digo. E é importante que a faca sirva apenas e tão-somente para o corte da cebola, porque a cebola, além de ser o alimento preferido das baratas, além de ser ótima para regenerar tecidos, a cebola deixa facas cegas como um Homero. Assim, pique a cebola, que, depois de minimamente picada, será depositada com critério no chão quente da panela e lá ficará a crepitar.

Aí chegou a hora sagrada dos tomates. Sim, o valioso tomate, tão valioso que os italianos chamam de pomo d’oro, o fruto de ouro que veio da América para ser transformado, nas cozinhas da Velha Bota, em ingrediente essencial para cometer molhos densos. Seis tomates frescos como as manhãs de primavera e vermelhos como a metade de cima da bandeira do Inter, é o que você terá separado. Esses tomates também estarão picados, mais até do que a cebola, que, quando se apresentar translúcida, quase amarela, receberá a companhia deles. Os tomates.

Tomates e cebola bem misturados pela ação amorosa de uma colher de pau, é o que deve ser feito, ao passo que o calor do fogo haverá de ser rebaixado, e nesse instante o sabor dos temperos precisa ser acrescentado: uma pitada de pimentinha do reino preta, sempre preta, uma colher de sopa de mostarda, talvez duas, outras duas de ketchup, quem sabe três, muito molho inglês, e pronto. Basta aguardar pela reação física dos elementos mesclados e submetidos ao fogo brando. Não precisa sal, talvez haja de acrescentar um nada de água, e só.

Eis o melhor molho de espaguete que você pode preparar para uma mulher de botas de salto alto e canos mais altos ainda numa noite de frio enregelante. Depois de cozida e escorrida a massa e depositada numa travessa, besunte-a com manteiga sem sal, espalhe o molho sobre ela e, no topo desse monte oloroso, polvilhe queijo parmesão de preferência uruguaio, recém ralado com seu próprio ralador. Agora você precisa de taças de fino cristal checo, um tinto levemente gelado e algum espírito para fazê-la rir, aquela linda mulher de botas de salto alto e cano mais alto ainda.

Sim, senhor, o inverno não é tão ruim assim.

A menos, é claro, que você tenha de assistir a um jogo desse time do Grêmio numa noite gelada de quarta-feira. Aí dá uma saudade do verão...

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